O fracasso da “reengenharia” e o triunfo da “gestão”. Uma história real e atemporal do mundo corporativo.

A EXPERIENCIA NO COMANDO 2022

Não se pode falar em governança e gestão, sem mencionar essa passagem da história corporativa recente no Brasil.

A década de oitenta é considerada referência à estagnação econômica vivida pela América Latina. O vírus da época era a “hiperinflação” e no Brasil parecia que nada dava certo. Planos econômicos mirabolantes nos tiravam do inferno e nos levavam para o caos, ou vice-versa, fazendo uma rápida escala no Paraíso. No mercado automobilístico, as “Big 4″ (Volkswagen, Chevrolet, Ford e Fiat) detinham 98% de participação e a compra de um carro novo era tido como ótimo investimento; alguns modelos eram vendidos com ágio de até 20% e as montadoras emitiam duas novas listas de preços, por mês, com índices de aumento que variavam entre 10% e 20%.

Eu começava minha carreira na Ford, exatamente no meio de uma forte retração da produção industrial, greves, conflitos sindicais e um manicômio no mercado financeiro. Os executivos das montadoras vinham trabalhar nas filiais brasileiras e aprendiam a ser rápidos, resilientes, maliciosos e flexíveis e então, retornavam às matrizes para assumirem posições de destaque global. Que escola de gestão tínhamos aqui, um laboratório único no mundo! 

O engodo da “reengenharia”

A década de noventa foi um cenário propício para que novos gurus da administração apresentassem ideias e conceitos revolucionários. A internet estava apenas nascendo e a tecnologia de sistemas ganhava o controle dos processos nas empresas. As prateleiras das livrarias borbulhavam com autores da academia norte-americana e fórmulas mágicas de processos inovadores de gestão. Um professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology) escreveu um artigo para a revista HBR (Harvard Business Review) em 1990 e propôs um novo conceito chamado “Reengenharia”. Dois anos depois, publicou o livro Reengineering the Corporation que, entre outras coisas, sugeria um tratamento de choque e a fusão de tarefas, a eliminação do que era desnecessário, maior autonomia organizacional, revisão de processos a partir do “zero” e a descentralização na tomada de decisões. Aquilo virou uma religião, também na indústria automobilística. Quem já havia lido o livro era “in”, quem ainda não havia lido era “out”.

Consultores se espalhavam pelo mundo destruindo empresas e organizações, pois a “reengenharia” trazia com ela um painel de controle, no qual havia um botãozinho vermelho chamado “downsizing”, que é algo completamente diferente da reengenharia, mas muita gente confundiu tudo. Essa “coisa” resultou em demissões no mundo inteiro com a má interpretação dos textos sobre a reengenharia, principalmente por grandes consultores acadêmicos e teóricos (inclusive no Brasil) que nunca haviam conduzido uma empresa, mas ditavam regras e mantras. Houve muito oportunismo também. Olhando pelo retrovisor eu até me assusto um pouco, pois, ainda a memória me remete àquelas sensações desconfortáveis.

As entrelinhas de uma história que não pode ser esquecida, a qual as novas gerações precisam conhecer, para que não se repita.

Os dois conceitos, downsizing e reengenharia, são muito bons, mas tudo requer cautela. Grandes empresas de consultoria eram contratadas pelas corporações para fazer uma completa revolução interna (redesenho de modelos, processos e até do negócio como um todo) e o resultado foi catastrófico em muitas delas. Profissionais antigos e experientes foram demitidos “a granel”, pois as organizações precisavam de novos líderes, aqueles que não tinham comprometimento com o passado e com os vícios da gestão antiga, arcaica e inchada. Junto com esses profissionais perdeu-se muito da história de cada empresa e jovens inexperientes começaram a ascender nas organizações. Alguns, não resistiram e caíram em poucos anos, deixando um estrago que custou muito dinheiro para ser recuperado anos mais tarde.

Perda de identidade, abalo na cultura organizacional, perda de market share e perda de rumo. Depois disso, algumas empresas fizeram o óbvio; “reengenheiraram a reengenharia”. Foram ao mercado buscar os “velhinhos” para retomar o controle da aeronave em pleno voo, eles tinham a memória do negócio, da empresa, do mercado e haviam aprendido as lições da década de oitenta.

Essa analogia me fez recordar um amigo que tive na década de 1990 e era piloto de Boeing em uma empresa aérea americana. Daqueles “jatões” intercontinentais que, para pilotar, o sujeito precisava ser do tipo “Capitão Kirk”.

A experiência na cabine de comando

Foi em uma viagem para Dearborn, EUA, onde ficava a sede da Ford, que conheci o Comandante Luson, um experiente piloto comercial com mais de cinquenta anos de idade. Eu tinha pouco mais de trinta anos e já estava preocupado com o futuro, pois para mim o futuro terminaria aos quarenta anos de idade. Sim, aos quarenta, porque as empresas e a mídia especializada em carreira sinalizavam exatamente isso para o mercado. Os headhunters e alguns consultores de RH caprichavam em jogar no lixo a autoestima dos profissionais com mais de quarenta anos de idade. Era, de certa forma, um reflexo da tal reengenharia. Quem excedesse essa idade estaria morto para o trabalho e eu ainda me sentia um neófito no mundo corporativo.

No hotel em Detroit, por uma coincidência, jantei com o Comandante Luson e mais dois colegas dele. Conversávamos sobre o tema, quando ele “reengenheirou” minha visão de futuro e disse o seguinte: “Não existem pilotos comerciais com menos de quarenta anos de idade capacitados para fazer o que eu faço. A responsabilidade é muito grande e as empresas não permitem que pilotos, sem tempo de voo, assumam o comando de aeronaves desse porte em escalas intercontinentais. Isso não é uma regra formal, mas até aqui tem sido uma prática”.

Então, recordo-me perfeitamente, perguntei a ele: como é que esses novos profissionais com MBA’s nas melhores universidades do mundo, com menos de trinta e cinco anos de idade, podem assumir o comando de organizações com milhares de pessoas, sendo que passaram todos esses anos estudando, sem ter a experiência do trabalho necessária para isso? Eles nunca enfrentaram uma greve, piquetes, uma tensão sindical, ou nem mesmo tiveram que fugir da Tereza.Para quem não sabe, durante as greves no ABC, os grevistas passavam uma corda grossa toda suja de graxa, para forçar os mensalistas engravatados a saírem dos escritórios. Essa corda era conhecida como Tereza. Um verdadeiro “show de horror”. Enfrentei a Tereza por duas vezes.’

O Comandante Luson me disse: “Se você puder identificar o melhor engenheiro aeronáutico da melhor universidade do mundo, recém-formado, com as melhores notas acadêmicas da história e der a ele o manual de operações do Boeing que eu piloto, certamente ele vai decorar milhares de páginas, de trás para frente, de cima para baixo e terá um conhecimento absoluto e inquestionável sobre este avião. Saberá o que fazer em cada situação, conforme o manual, e vai decolar o Boeing. Porém, provavelmente vai derrubar o avião na primeira turbulência e matar todos os passageiros. É por isso que, para pilotar o meu avião, um dos maiores em operação no mundo, é mandatório que além de milhares de horas de voo em registro, o comandante tenha mais de quarenta anos de idade e nunca esteja sozinho na cabine de comando”.

Parece que o Comandante Luson estava prevendo o que aconteceria com as corporações nos anos seguintes. As turbulências eram a competição no mercado, a chegada de novos players, a ascensão da China, o avanço da comunicação, as demandas por sustentabilidade e o surgimento de novas tecnologias. É claro que houve casos de gestores com menos de quarenta anos que assumiram com muito sucesso a responsabilidade e o comando de grandes organizações, mas, no universo empresarial pós-crises das décadas de oitenta e noventa, contamos nos dedos das mãos aqueles que não se atrapalharam com as turbulências de voo.

No final, toda mudança ou novo projeto precisam ser avalizados na última linha do P&L

Há pouco mais de vinte anos os gurus corporativos diziam: “o futuro pertence às empresas que melhor explorarem os processos que a reengenharia definiu, restando apenas transformar as pessoas”. Esqueça imediatamente essa barbárie! Já escrevi sobre o que penso de alguns gurus corporativos que nunca conduziram uma empresa na vida e se o fizessem, provavelmente a levariam à falência. Claro que isso não é uma regra, mas depois de trinta e sete anos no mundo corporativo e mais de vinte crises econômicas no retrovisor, afirmo que conheci gestores da mais alta competência e seriedade, fontes de inspiração e ensinamentos, assim como convivi com profissionais despreparados, teóricos e oportunistas, que não sobreviveram à famosa seleção natural dos resultados corporativos na última linha do P&L. Felizmente, as ferramentas que mais evoluíram nos últimos anos foram os processos de Governança Corporativa, seja pela necessidade de recolocar os negócios nos trilhos ou pelas demandas das comissões de valores mobiliários para empresas de capital aberto, que exigiram transparência e prestação de contas.

Graças aos conselhos administrativos, deliberativos, consultivos e gestores, fazer besteiras seguidamente na condução das corporações ficou bem mais difícil.

Olhe para a frente, mas não esqueça do espelho retrovisor

Refiro-me a um apanhado de competências e habilidades, necessárias para enfrentar a turbulência. Novamente, a história se repete e é momento de valorizar os anciãos, a ética e a responsabilidade na condução dos negócios corporativos, públicos e privados, trazendo a experiência como apoio na gestão e nas decisões estratégicas. Experiência vem junto com credibilidade. O Brasil é assim, não é um país para amadores (já dizia meu saudoso professor Belmiro Valverde Jobim Castor, em seu best-seller do início dos anos dois mil).

Respeitar os profissionais calejados ou conselheiros, que muitas vezes trazem na memória a bagagem das entrelinhas da história da própria empresa, é um sinal de sabedoria e inteligência, além de facilitar a conquista do respeito dos stakeholders.

Romper com o passado corporativo pode estabelecer o prazo de validade dos novos gestores. O fim jamais justificará os meios para se atingir objetivos pessoais e de carreira, mas os meios, se forem planejados, bem gerenciados e éticos, poderão conduzir a empresa a um frutífero objetivo a ser alcançado. Hoje, a longevidade profissional estendeu-se muito. O conhecimento e a bagagem dos “velhinhos” são ativos preciosos e à disposição.

Nunca se esqueça de celebrar as conquistas com sua equipe e também de agradecer aos conselhos do oráculo. Empresas não podem dispensar o conhecimento e a credibilidade dos anciãos. Às vezes, a inexperiência pode custar muito caro e comprometer o futuro do negócio.

Orlando Merluzzi  (*)


(*) Anfitrião no Portal Pensamento Corporativo, conselheiro independente, mentor, palestrante, consultor e sócio da MA8 Consulting Group, atua na indústria e no mundo corporativo há mais de 37 anos.


Artigo publicado originalmente em 2017 e atualizado em 2022. | “Extratos do livro Potência Corporativa, transformando o clima organizacional e a adrenalina em resultados para a organização, ©2017-©2021, do mesmo autor”


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