Quando a ética derrapa em um discurso infeliz do CEO

…reputação se constrói apenas uma vez e se destrói por várias vezes e por todos os lados.

Em anos recentes tenho publicado vários artigos correlacionando ética com educação, comportamento e clima organizacional, temas nos quais me especializei. Por mais que pareçam recorrentes, principalmente quando falo sobre ética, regularmente tomo conhecimento de situações imorais que agridem valores das organizações, embora seus próprios autores as considerem corretas, equivocadamente.

O caso Kroton

Nesta semana a imprensa divulgou, com espanto, o trecho de uma palestra do CEO da maior empresa da área de Educação no Brasil, que ao falar para um público qualificado, disse: “durante a reestruturação de minha empresa, para obter conhecimento, eu criava um processo seletivo de consultorias, ouvia o que elas tinham a ensinar sobre aquele problema e depois não contratava ninguém, aplicando o que eu havia aprendido”. Ou seja, o executivo criava, através de um falso processo de contratação, a ilusão nas empresas de consultoria de que poderiam ser escolhidas para conduzir o projeto com aquele cliente e para isso, teria maiores chances de vencer a concorrência, a consultoria que fornecesse de imediato uma visão e indícios de solução para a demanda do cliente.

Ora, só quem conhece a forma de trabalhar de empresas de consultoria competentes e idôneas sabe a complexidade e o tempo que pode levar o desenvolvimento de uma proposta para um projeto específico.

A ética passou longe

Assim, o empresário coletava uma série de informações qualificadas de fontes diversas, formava sua própria conclusão, agregava um espírito inovador, decidia por um caminho a seguir e não pagava ninguém. Um jeito inteligente e barato de fazer as coisas, mas completamente imoral em meu julgamento.

A forma como ele citou tal fato em sua palestra (um evento da Endeavor)  deixou claro que o oportunismo sobrepôs à ética, mesmo que o contexto do seu discurso tenha sido outro, mas foi somente devido à grande reação negativa das mídias sociais, que se deu conta da infelicidade de suas palavras. Tentou posteriormente se justificar na própria mídia social, dizendo que estava “brincando”, pediu desculpas, mas entendia que não houve má fé nem postura antiética, pois tais fornecedores já eram parceiros. Bem, ficou pior a emenda do que o soneto.

Não vai aqui nenhuma crítica à empresa ou ao executivo – empresário de sucesso – mesmo porque estou certo que aquela empresa possui um código de ética e conduta, que no conceito filosófico se constitui nos “valores da organização”, código que provavelmente tem a assinatura do próprio executivo e que certamente não sugere tais práticas imorais.

Uma situação regular no mercado, infelizmente

Pego carona nessa situação para afirmar que práticas imorais ainda se observam em muitas empresas, apesar das consolidações de governança corporativa. Atos inconsequentes que rompem as barreiras da ética, na maioria das vezes são praticados por funcionários inexperientes ou que querem apenas demonstrar serviço aos seus superiores, mas não possuem a menor ideia do estrago que causam na reputação da sua organização. O mesmo ocorre, por exemplo, quando a empresa adia os pagamentos aos seus fornecedores, sem justificativas ou pré-acordo, simplesmente porque alguém na área de Compras ou Finanças resolveu apresentar “performance on payment terms” para os chefes.

Muitas são as atitudes inconsequentes que corroem silenciosamente a reputação de uma organização. O mercado fornecedor comenta, a imagem negativa se propaga e o custo disso provavelmente será notado nas próximas cotações de seus fornecedores, assim como um banco, que ao dar crédito para um cliente ou empresa dimensiona o spread de risco na taxa de juros. Ao final, quem paga a conta pela desobediência às fronteiras da ética, é a empresa.

Voltando a questão inicial e sem entrar novamente nas discussões filosóficas entre o que é moral ou imoral e a capacidade de julgamento sobre os valores que definem o que é eticamente aceito ou não, as empresas precisam fazer urgentemente uma releitura dos temas: ética, valores, moral e as práticas de tudo isso, de forma que os colaboradores, talentos e gestores possam manter posturas responsáveis em todos os aspectos comportamentais e de relações interpessoais e empresariais.

A moral do oportunismo e da vaidade

Embora, empresas sejam feitas de pessoas, no seu curso normal as pessoas passam e as empresas permanecem, mas carregarão sempre consigo a reputação construída ou destruída por irresponsabilidade, imaturidade ou incompetência. Eu prefiro pensar que em raríssimas ocasiões tenham ocorrido por questões de caráter ou desonestidade. Hoje vivemos uma enxurrada de denúncias corporativas – principalmente as que envolvem políticos nas mais diversas situações, e sem generalizar – diariamente tomamos conhecimento de algumas práticas questionáveis e inaceitáveis, tais como corrupção em órgãos públicos e licitações, pirataria, espionagem industrial, fraudes contábeis, falsificações, tráfico de influência, superfaturamento, assédio (de todos os tipos) e tantas outras que seus praticantes sentem-se justificados pela moral do oportunismo, do egoísmo e da vaidade.

Na questão ética, aquela em que se julgam os valores de uma sociedade e os aceitam moralmente, não pode haver espaço para a cultura do “faço porque todos fazem” ou, “se eu não fizer, não conseguirei trabalhar porque essa é a regra vigente”.

As questões morais escondem-se em muitas decisões do cotidiano empresarial, ainda que seus principais gestores não tenham plena consciência disso, mas não há como isolar a delegação de poder e responsabilidade em casos de tais atitudes no mundo corporativo. Se um funcionário da linha de frente escorrega no senso moral, as consequências respingam em todos na organização, inclusive no presidente. Não adianta punir. O caminho correto é trabalhar na prevenção.

A boa “governança e gestão” não aceita, não admite tais práticas e não pode fugir à ética filosófica que julga valores do que é certo ou errado, bom ou ruim. O mercado é cruel e não há perdão corporativo em tais casos. Reputação é algo que se constrói apenas uma vez e se destrói por várias vezes e por todos os lados.

A Ética pede passagem na vida, na política, nas empresas e nas relações. A Educação deficiente – e isso é um problema crônico em nosso País – coloca em risco e poderá retardar a capacidade de julgamento das pessoas sobre os valores morais e o processo de discernimento que define o que é ético para cada um de nós e para a sociedade na qual vivemos.

Orlando Merluzzi – 30-10-2016


Nota: A matéria que forneceu os dados iniciais para esse artigo foi publicada em 28/10/2016 no site do Infomoney. 


3 respostas para “Quando a ética derrapa em um discurso infeliz do CEO”

  1. Esta matéria do Orlando reflete bem o que muito mais vezes do que seria de se esperar acontece nas empresas. Falo por experiência própria como consultor.

  2. A boa governança e gestão devem respirar a ética, todavia em fundações e entidades filantrópicas pelo que tenho observado não vem ocorrendo, haja vista o jeitinho malandro de pagar contas pessoais e de familiares com dinheiro para outro fim. Nestes casos a corrupção com ações políticas se tornam rompimento ético em todos os sentidos. Penso muito nisso atualmente, uma vez que após atuar na saúde pública por 22 anos cheguei a triste conclusão de que o dinheiro pode ser mal usado, sendo que em empresas privadas não haveria desperdício. Até certo ponto sim, no entanto quando um dirigente se perpetua num cargo filantrópico os desvios de finalidade também aparecem motivados sempre por falta de formação ética no berço. Pequenas coisas são aprendidas na infância. Infelizmente, hoje vemos pessoas com uma formação cultural de primeira linha praticando atos delituosos. No artigo, o Orlando cita um caso absurdo de alguém que furta ideias de profissionais em consultoria, e qual a diferença deste CEO com um ladrão comum? O segundo não teve a mesma formação cultural. Eticamente ambos errados

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